![]() |
Foto: Reprodução |
Entre
árvores, moradias de teto baixo e chão batido, vila de Cruzeirinho, em Icó,
protagoniza memórias de uma mulher cuja infância resgata o que há de mais
bonito na gente e na vida
Talvez a graça do mundo seja
sair da cozinha e ter rio a poucos metros esperando mergulho. Sentar na calçada
e aguardar vento, conversar da vida nossa e alheia. Observar a noite caindo,
igrejinha tocando sino, gente preparando missa e festa.
Há dezenas de anos essa é a
rotina de Cruzeirinho, vila no distrito de mesmo nome em Icó, interior
cearense. Terra que renasce aos poucos no mapa do Ceará, feito silêncio bom,
surpresa boa chegando.
É coisa de uma das filhas mais
inspiradas desse chão. Dacilene de França reposicionou o lugar na
geografia ao escrever sobre ele. Está registrado em dois livros: “É preciso
manifestar o que há de melhor” e “A grandeza da natureza”. Neles, conta da
infância rica em simplicidade, atenta às árvores, às águas e à vida. Ao que de
bonito tem em nós.
Parece Manoel de Barros,
o poeta das “insignificâncias”. E começa da forma como comecei: o privilégio de
se saber próxima do que de fato importa. Ela recorda. A vilinha de 11 casas é
margeada pelo rio Salgado, onde irmãos, primos e amigos se reuniam para banhar
e brincar. Gostavam da sensação de correnteza, de lago, de lagoa. Parecia sonho
aquilo tão próximo.
A escola também estava ali, ao
lado deles. Tantas crianças atravessando quilômetros para estudar, e de repente
aquela dádiva de ter o saber perto. Quando a aula acabava, havia tarefa e
dever, mas também prazer por serem os colegas de turma aqueles mesmos que
corriam pelo chão de terra batida. Soltavam pipa, escalavam tronco, criavam
pião.
E as canções da igrejinha de
São José ecoavam e se ouvia súplica e prece. Dentro das moradias, pais e mães,
tias e tios, avôs e avós partilhavam experiências, davam conselhos. Dacilene
ouvia tudo com atenção e não arredava pé das histórias mais mirabolantes ou até
das simplórias: importava estar ali, com as pessoas preferidas do mundo,
refundando-o.
Hoje, mais de 40 anos depois,
ela olha para trás e chora de sorrir. É crescida, escritora, pedagoga,
psicóloga. E diz que, se há desejo de não deixar esse pedaço de chão tão
importante se perder no desconhecimento, é porque existe sobretudo amor, que
semeia e cultiva o belo. Amor todo cheio de memória e História.
Icó, terceira cidade mais
antiga do Estado do Ceará, derivou de Cruzeirinho. Os primeiros lares, as
primeiras luzes. A vila crescendo, não perdeu o nome – resultado da presença de
um cruzeiro em frente à capela, fundada em 1852 – e ainda se ampliou para o
nome de um distrito a 25 quilômetros da sede da cidade. Mas ainda estão lá o
rio, a igreja, a escola, o cemitério.
Dacilene ainda retorna, agora
com o filho – Davi, de 23 anos – e não cansa de abraçar os herdeiros dos
antigos parentes que lá moravam, família França em peso. Gente que sente a
diferença da infância bem vivida: suavidade na alma, delicadeza nos gestos, gosto
por existir.
“Quando vejo minha vida,
percebo o quanto sou privilegiada pela infância que tive. Vivi com minha
família, tive amigos, liberdade dentro da natureza. Crescer em um ambiente em
que você tem todo esse acolhimento, faz diferença”.
E, de quebra, reinaugura um
espaço, faz com que se torne polo de algo muito bom. Bateu em você a mesma
vontade de conhecer Cruzeirinho? O mesmo apetite de cantarolar “Vilarejo”, de
Marisa, porque é a reencarnação desse lugar? A mesma força para presentificar o
amor em terra e chão dada a capacidade de impulsionar o bem? Eis aí a graça do
mundo.
Esta é a história de amor de Dacilene de França e a vila de Cruzeirinho, em Icó, interior cearense. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor
Fonte: Diário do Nordeste
Postar um comentário