Solicitações junto à Defensoria
Pública do Ceará saltaram de oito, em 2014, para 122, no ano passado. Desde
2018, não é mais preciso entrar na Justiça para pedir mudança de nome e gênero
na certidão de nascimento
Querer ser enxergado vai muito além da necessidade de aparecer.
Para transexuais e travestis, aliás, pode ser exatamente o oposto: é a
necessidade de ter a existência tão naturalizada a ponto de não atrair olhares,
comentários ou violência. Quando o nome condiz com o gênero no papel, esse
direito fica mais próximo. De 2014 a 2019, mais de 220 pessoas trans entraram
com procedimentos administrativos na Defensoria Pública do Estado para
retificar prenome e gênero no registro civil - primeiro passo para nascer de
novo.
Há
seis anos, apenas oito solicitações foram registradas no Núcleo de Direitos
Humanos e Ações Coletivas (NDHAC) da Defensoria. Em 2018, o número de
transexuais e travestis que recorreram ao órgão para adequar o registro e as
demais documentações pessoais ao nome e gênero corretos saltou para 75 -
aumento que pode ser atribuído ao efeito da determinação do Supremo Tribunal
Federal (STF) de desburocratizar os processos de ser e existir.
Em março daquele ano, o STF estabeleceu que as mudanças na certidão de
nascimento de pessoas trans poderiam ser feitas diretamente nos cartórios, sem
necessidade de ir ao Poder Judiciário, de fazer cirurgia de redesignação sexual
ou de apresentar laudos médicos. A decisão do STF foi regulamentada no dia 28
de junho do mesmo ano, pelo Provimento nº 73 do Conselho Nacional de Justiça
(CNJ).
Processos
Assim
que soube da decisão, o motorista de aplicativo Carlos Ian Pinheiro, 28,
acelerou a junção dos quase 30 documentos necessários para dar início ao
processo, à época: que custou, no fim das contas, cerca de R$ 400. "Quando
fui ao cartório, eu levei toda a lei, então não tive dificuldade. Foi em torno
de um mês pra ter minha certidão correta nas mãos. Eu mesmo escolhi meu nome,
em homenagem ao meu avô", relembra Ian.
A
fase de transição do gênero designado no nascimento até o que ele se reconhece
já dura três anos - período em que presenciou diversas violações contra amigos.
"Eu mesmo nunca passei por constrangimentos ou preconceito, porque sempre
fui muito masculino. Mas sei que ainda tem muitos homens trans que sofrem
violência e passam por essas coisas", lamenta.
O
universitário Bruno Gomes, 26, foi um deles. Só por ser quem é, teve corpo e
mente violentados pela transfobia. "Sofri agressão por parte de três
pessoas, e acabei deixando de lado o processo de mudança do registro. Mas pra
mim é muito chato já estar na transição e, na faculdade ou em entrevista de
emprego, me chamarem pelo meu nome civil. A gente não quer ser chamado pelo
nome que tá no documento, e sim pelo que a gente se identifica", explica,
em um tom de quem já precisou dizer o óbvio tantas vezes.
Foi
justamente depois de "querer sumir" de uma sala de espera para
entrevista de trabalho que Bruno se tornou um dos 122 transexuais a
solicitarem, só no ano passado, a assistência da Defensoria Pública para
retificar o registro de nascimento - por meio do qual todos os outros
documentos podem ser alterados.
"Me
chamaram pelo nome de registro, na frente de todo mundo. Tive que levantar e me
senti muito constrangido, com todos me olhando. Foi quando decidi que deveria
mudar", relata ele.
Encaminhamentos
Sob
orientação do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra (CRLGBTJD), da Prefeitura
de Fortaleza, Bruno iniciou o processo nesta semana. "Poder fazer isso é
uma conquista grande. E vai ser um renascimento. É o que eu penso e desejo. Tô
muito ansioso pra pegar esses documentos e ver tudo mudado, respeitando quem eu
sou. Não vou passar mais constrangimentos, sabe? Quando receber tudo, vou
voltar a colocar currículo das empresas. Até isso eu tinha parado de
fazer", revela. De acordo com Mariana Lobo, titular do NDHAC, o processo
de retificação dos registros civis dura, em média, três meses - mas os
transtornos causados às pessoas trans podem ir além disso.
"No
começo, ainda se tinha um desconhecimento grande dos cartórios. Hoje, já não
temos mais essa dificuldade. Mas ainda existem muitos casos de constrangimentos
mesmo após a documentação retificada. Tivemos um em que a pessoa teve problemas
para alterar os dados do seguro de saúde. Em casos assim, podemos inclusive
entrar com ação de reparação de danos morais ou até materiais", alerta a
defensora pública.
Demandas
Alexandre
Alencar, vice-presidente da Associação dos Notários e Registradores do Ceará
(Anoreg/CE), reconhece que "problemas pontuais" podem acontecer nos
cartórios, mas que o desconhecimento quanto às resoluções e problemas nos
atendimentos às pessoas trans e travestis, no geral, "não existem
mais". "O que muitas vezes tem acontecido é que a pessoa está no
cartório de Fortaleza, mas nasceu em outro município, e tem dificuldade de
requerer os 14 documentos exigidos", aponta.
A
busca por orientação sobre como proceder para adequar certidão, RG, título de
eleitor e todos esses papéis-de-existir à real identidade de gênero é uma das
maiores demandas no Centro de Referência LGBT da capital cearense, conforme
relata Dediane Souza, titular da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual
da Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS).
"Prestamos
o auxílio inclusive com serviço social, para compreender as necessidades dessas
pessoas. Muitas não têm condições financeiras, porque a retificação tem um
custo e é burocratizada. Ainda é um processo demorado, e alguns cartórios ainda
apresentam dificuldades para emissão. Quem tem menos condições financeiras
enfrenta um trâmite muito mais longo", critica Dediane, apontando que a
solução é encaminhar os atendimentos à Defensoria.
A
titular da coordenadoria avalia, como mulher transexual, que o processo de ser
reconhecida, vista e respeitada é a "maior disputa" de trans e
travestis, atualmente. "Até 2018, não tínhamos nossa identidade
reconhecida como cidadãs. Lutamos pela garantia dos direitos básicos da
existência. Não reconhecer as travestis e trans pelo nome e gênero pelos quais
elas se identificam é negar acesso a políticas de assistência, de transferência
de renda, ao mercado de trabalho e à política educacional por causa da
identidade. É negar a existência desses sujeitos. Ainda é um grande vexame a
gente ter que justificar, todos os dias, a nossa travestilidade e
transexualidade à sociedade", sentencia.
Fonte: Diário do Nordeste