Para o ex-presidente da Funai e sócio
fundador do ISA Márcio Santilli, o objetivo do projeto não é promover o
desenvolvimento econômico dos índios, mas garantir a exploração por terceiros
de riquezas naturais
O projeto de lei encaminhado pelo presidente Jair
Bolsonaro ao Congresso nesta quinta-feira (6) para permitir
mineração e outros empreendimentos em terras indígenas pretende
também autorizar o plantio de sementes geneticamente modificadas nesses
territórios. A prática é proibida por uma lei federal de 2007.
O uso de transgênicos em áreas de soja e milho foi
o motivo pelo qual o Ibama multou, em 2018, associações de indígenas parecis em
Mato Grosso que também arredavam terras a produtores não indígenas.
Após a eleição de Bolsonaro, os ministros Ricardo
Salles (Meio Ambiente) e Tereza Cristina (Agricultura) passaram a apoiar o
plantio em terras indígenas e a criticar as multas do Ibama - as áreas parecis
embargadas pela fiscalização depois foram liberadas pelo presidente do Ibama
nomeado por Salles.
Segundo a ex-presidente do Ibama Suely Araújo, o
veto a transgênicos em terras indígenas visa proteger a diversidade e
integridade do patrimônio genético do país, como previsto na Constituição.
"Essa liberação prevista no projeto constitui retrocesso grave em termos
de proteção ambiental", afirmou.
Para a advogada da organização não governamental
ISA (Instituto Socioambiental) Juliana Batista, transgênicos podem contaminar
sementes crioulas e nativas, inviabilizar atividades produtivas tradicionais e
deixar os indígenas dependentes da compra de sementes e agrotóxicos.
O projeto de Bolsonaro pretende
autorizar uma série de atividades empresariais em terras indígenas, como
extração de minérios, construção de hidrelétricas, agricultura, pecuária e
turismo.
Além disso, prevê o pagamento de royalties e a
formação de conselhos curadores indígenas. Também estabelece que os indígenas
serão ouvidos, mas não terão poder de veto sobre o empreendimento - apenas a
atividade de lavra garimpeira poderá ser recusada, segundo o projeto.
Na justificativa do projeto, o governo diz que a
Constituição de 1988 dispensou especial tratamento a pesquisa e lavra de
recursos minerais e aproveitamento de potenciais de energia hidráulica em
terras indígenas, mas que esse ponto ainda não foi regulamentado.
"A não regulamentação da matéria, além de
insegurança jurídica, traz consequências danosas para o país, tais como: não
geração de conhecimento geológico, potencial de energia, emprego e renda; lavra
ilegal; não pagamento de compensações financeiras e tributos; ausência de
fiscalização do aproveitamento de recursos minerais e hídricos; riscos à vida,
à saúde, à organização social, costumes e tradições dos povos indígenas;
conflitos entre empreendedores e indígenas", diz o texto assinado pelos
ministros Bento Albuquerque Junior (Minas e Energia) e Sergio Moro (Justiça e
Segurança Pública).
A versão final do texto apresentou recuos em
relação à minuta inicial que estava para ser encaminhada ao parlamento no
segundo semestre do ano passado, conforme o jornal Folha de S.Paulo revelou em
setembro.
Na ocasião, especialistas atacaram principalmente a
criação de um conselho curador nacional, formado por indígenas e técnicos
indicados pelo governo, o que foi considerada a volta da tutela do Estado sobre
essas populações, figura extinta pela Constituição de 1988, com algumas
exceções.
Também gerou críticas a permissão de atividades
empresariais em terras com registros de indígenas isolados - a Funai confirma
28 grupos do gênero na Amazônia Legal e outras dezenas de informações ainda são
checadas. Esses dois pontos foram alterados, mas indigenistas e especialistas
continuam severas críticas ao projeto.
Na questão dos índios isolados, por exemplo, o
texto final prevê que as atividades empresariais não poderão ocorrer em
"terras indígenas com registro de comunidades isoladas", mas ao mesmo
tempo diz que caberá à Funai estabelecer os limites necessários à proteção
dessas comunidades. Ou seja, poderia haver um recorte dentro de uma terra
indígena, prejudicando a livre circulação dos índios sem contato em seu próprio
território.
"Em terras exclusivas de isolados, como a dos
kawahivas [Mato Grosso], o limite necessário já é delimitação da própria terra.
Em terras compartilhadas, como a Yanomami e a Vale do Javari, o processo seria
ainda mais complexo, seria preciso uma equipe estudar por anos para fazer um
etnozoneamento e 'avisar os isolados' que eles não podem ultrapassar essa
área", disse a antropóloga e indigenista Leila Burger, ex-coordenadora do
setor de índios isolados e de recente contato da Funai.
Para os isolados não há fronteiras,
esse conceito é ocidental, do colonizador.
Ela defendeu que, mesmo em empreendimentos
instalados fora das terras indígenas, há risco de invasões de trabalhadores da
obra para caça e pesca, com risco de conflitos, inclusive com mortes tanto de
índios quanto de não índios.
Para o ex-presidente da Funai e sócio fundador do
ISA Márcio Santilli, o objetivo do projeto não é promover o desenvolvimento
econômico dos índios, mas garantir a exploração por terceiros de riquezas
naturais. "O projeto não
trata nem incentiva a produção econômica dos índios, mas os induz a depender de
royalties enquanto assistem o esbulho das suas terras", critica.
O governo, na justificativa, afirma
que o projeto tem como público-alvo "as comunidades indígenas afetadas
pelos empreendimentos, os empreendedores interessados no aproveitamento
econômico dos recursos minerais e dos potenciais de energia hidráulica em
terras indígenas e o próprio Poder Público".
Fonte: Diário do Nordeste