Para a
procuradora-geral da República, Raquel Dodge, a Justiça brasileira "não é
para todos".
"Ela costuma
atingir muito rapidamente para os que não podem pagar por advogados, em geral
pessoas pobres, presas em flagrante e que ficam encarceiradas por longos anos.
Todavia, a Justiça atinge, quando atinge, muito lentamente os que têm recursos
financeiros para manter um processo aberto e interpor sucessivos recursos, que
impedem uma condenacao definitiva, ou (impedem) a pena de ser cumprida",
avaliou.
Em palestra para alunos
das universidades de Harvard e MIT, nos Estados Unidos, no sábado, Dodge não
fez qualquer menção ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que
simultaneamente discursava para apoiadores em São Bernardo do Campo, pouco
antes de se apresentar à Polícia Federal.
Mas a procuradora-geral
falou muito sobre a criminalidade entre políticos. "Os mais ricos não têm
sido responsabilizados criminalmente pelos crimes de corrupção, e os mais
pobres continuam à margem da proteção da lei quando se trata de direitos
fundamentais".
A conclusão, segundo
Dodge, é "que prendemos muito, mas prendemos mal".
"A maioria são
jovens presos por furtos, por tráfico de pequenas quantidades de droga. No
entanto, autores de crimes de colarinho branco, os que furtam elevada
quantidade de recursos públicos, ou estão soltos, muitos sequer foram investigados
e punidos."
"Os donos dos
negócios de tráfico de armas, drogas e munição também não estão presos",
prosseguiu.
Impunidade
Dodge evitou contato
com a imprensa durante todo o evento. Questionada a respeito de uma nova rodada
de votos do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre prisões após condenação em
segunda instância, não mostrou preocupação: "Vejo isso com muita
tranquilidade, porque o STF já se manifestou quatro vezes na mesma linha".
Durante a palestra, a
primeira mulher a assumir a Procuradoria-Geral da República comentou "a
crescente sensação de impunidade e desconfiança nas decisões judiciais",
que vem dominando debates em redes sociais e nas ruas. "As decisões
(judiciais) são muitas, mas pela minha experiência de 30 anos de Ministério Público,
posso dizer que são bem fundamentadas", afirmou. "Mas elas não têm
produzido esse efeito de fazer a lei valer para todos".
A desconfiança, para a chefe do Ministério Público Federal, seria fruto da
"interposição sucessiva de recursos" - tema muito discutido nesta
semana no Brasil, graças aos recursos negados ao ex-presidente petista na
Suprema Corte.
A procuradora-geral foi
além e sugeriu que a impunidade de poderosos - empresários e políticos -
contribui para a desigualdade social no país, já que verbas desviadas de
serviços públicos não chegam até a população. Os brasileiros teriam demorado a
acordar para essa situação, segundo Dodge.
"As pessoas
apropriavam-se de bens públicos, utilizavam helicópteros públicos para fins
privados, permitiam construção de obras públicas em obras privadas, uso de
servidores públicos para prestar serviços privados, permitiam e toleravam a
corrupção de verbas públicas", afirmou.
"Isso (vinha)
impedindo a prestação de serviços para a população. Saúde, educação, transportes
contam há muitos anos com orçamento público elevado, mas nunca tivemos atitudes
incisivas para cobrar que fossem efetivamente utilizados".
Para Dodge, no entanto,
"a (operação) Lava Jato, o (julgamento do) mensalão e algumas poucas
novidades têm mudado esse quadro".
Ao comentar o crescente
empenho da sociedade em cobrar punição a corruptos, Dodge citou uma frase do
ícone americano de direitos civis Martin Luther King, cuja morte acaba de
completar 50 anos. "Quando os fatos se reúnem aos sentimentos, quando o
que acontece na realidade é compartilhado pela percepção das pessoas, surge a
urgência do agora."
O tamanho da Justiça
A plateia se
impressionou com os números apresentados pela procuradora-geral. O Judiciário
brasileiro, segundo Dodge, tem 242 mil servidores - um volume semelhante ao dos
Ministérios Públicos espalhados pelo país.
"Por outro lado, o
Judiciário é muito demandado pela população", prosseguiu. "Em 2016,
havia 80 milhões de processos para 18 mil juízes - o equivalente a quase 4,5
mil processos para cada magistrado."
"A carga de
trabalho é imensa. Cada um julga uma média de 2 mil processos por ano e
sentencia 8,3 processos por dia util de trabalho. Não é pouco", resumiu.
Segundo as estatísticas apresentadas pela PGR, existem atualmente 14 processos
em andamento para cada 100 brasileiros. "É uma intensa judicialização,
talvez devido à falta de outros mecanismos mais disseminados de resolução de
conflitos, como a arbitragem".