Para Thomas Shannon, que
chefiou embaixada dos EUA no Brasil entre 2009 e 2013, mudança na estratégia de
Trump em relação ao Brasil também reflete preocupação com impacto de tarifas
sobre produtos brasileiros para consumidores americanos.
Thomas Shannon serviu como embaixador dos EUA no Brasil entre 2009 e 2013 — Foto: BBC News fonte
Após semanas de tensão que
levaram Brasil e Estados Unidos ao pior momento de sua relação em décadas, os
governos dos dois países iniciam um movimento de reaproximação.
A trégua teve início com o
presidente Donald Trump, que, após encontro com Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
na Assembleia Geral da ONU, em setembro, disse ter gostado do brasileiro.
Lula retribuiu o afago, os
dois voltaram a conversar por telefone e, agora, assessores planejam um
encontro presencial entre os líderes — reunião que pode acontecer na Malásia,
durante uma cúpula da Asean (Associação das Nações do Sudeste Asiático).
A aproximação marca uma
guinada na postura de Trump, que, em julho, havia imposto uma tarifa de 50%
sobre produtos brasileiros e condicionado a normalização das relações à
suspensão do julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), seu aliado
político. Mas o que motivou a reviravolta?
Em entrevista à BBC News
Brasil, o ex-embaixador dos EUA no Brasil Thomas Shannon aponta dois principais
fatores. O primeiro, segundo ele, é o reconhecimento de Trump de que não
conseguiria interferir no processo judicial de Bolsonaro.
"Trump sabe que sua
tentativa de proteger Bolsonaro da prisão e garantir que ele pudesse disputar
eleições fracassou", afirma o diplomata.
Mesmo após Trump impor as
tarifas contra o Brasil e sanções contra ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) baseadas na Lei Magnitsky, Bolsonaro foi condenado pela corte a 27 anos e
3 meses de prisão por golpe de Estado e outros crimes.
A segunda razão, segundo
Shannon, é que Trump foi convencido de que as tarifas sobre produtos
brasileiros prejudicariam empresas e consumidores americanos.
"Acho que o presidente
foi exposto, por meio do setor privado americano, a uma espécie de curso
intensivo sobre o impacto que essas tarifas teriam no dia a dia de muitos
americanos", ele diz.
Para o diplomata, Trump sentiu
que estava mal informado ou foi induzido ao erro ao sancionar o Brasil, e
assumiu para si a responsabilidade de reverter o quadro.
"O que ele fez, ao estilo
Trump, foi transformar um problema bilateral entre dois países em um encontro
pessoal positivo, e usou esse encontro para mudar o tom da conversa entre os
dois países", diz.
"No mundo da diplomacia,
isso é um movimento muito inteligente", afirma.
No entanto, Shannon não
acredita que essa reaproximação signifique a reversão das sanções contra
ministros do STF e outras figuras políticas. Na visão dele, as negociações
entre EUA e Brasil devem se concentrar em questões econômicas.
Diplomata de carreira, Shannon
foi embaixador dos EUA no Brasil entre 2009 e 2013, nomeado pelo então
presidente Barack Obama.
Também ocupou o cargo de
Subsecretário de Estado para o Hemisfério Ocidental — principal posto
diplomático dos EUA para a América Latina — e, posteriormente, o cargo de
Subsecretário de Estado para Assuntos Políticos, a terceira posição mais alta
da chancelaria americana.
Ele se aposentou do serviço
público em 2018 e hoje atua como assessor sênior de Política Internacional no
escritório de advocacia americano Arnold & Porter, contratado pelo governo
brasileiro para tentar reverter as tarifas em Washington.
Questionado sobre sua atuação
no caso, disse que não poderia comentá-la por questões contratuais.
Entrevista da BBC News
BBC News Brasil - O que o
senhor acha que levou o presidente Trump a suavizar o tom contra o Brasil? Foi
só a "química" que ele disse ter tido com Lula quando se encontraram
na ONU?
Shannon - Isso foi parte da
história. O encontro na ONU quase certamente foi planejado — se não pelo
presidente Lula, com certeza pelo presidente Trump.
Trump sabia que o Brasil
sempre fala primeiro e os Estados Unidos em segundo. Então ele sabia que quase
certamente encontraria Lula. Mas acho que não foi isso que motivou a mudança na
postura.
Trump estava adotando uma
estratégia que, quase certamente, continuaria até pelo menos as eleições
brasileiras. Era um longo período.
E as tarifas não apenas teriam
impacto no Brasil, mas também nos Estados Unidos — não apenas nos consumidores
americanos, mas nas empresas americanas que dependem de produtos brasileiros ou
que têm empresas brasileiras em suas cadeias de suprimento. E elas teriam que
aumentar os preços de seus produtos.
Isso se tornaria cada vez mais
controverso e desafiador, especialmente se o Brasil não desse sinais de ceder —
e o Brasil não deu sinais de ceder.
Acho que Trump entendeu que
foi mal informado ou induzido ao erro [ao sancionar o Brasil] e que caberia a
ele tirar os EUA dessa situação e tentar criar uma solução.
Parabéns ao presidente Trump,
porque o que ele fez, ao estilo Trump, foi transformar um problema bilateral
entre dois países em um encontro pessoal positivo, e usou esse encontro para
mudar o tom da conversa entre os dois países. No mundo da diplomacia, isso é um
movimento muito inteligente.
BBC News Brasil - O senhor
acha que os pedidos de Trump pela anulação do julgamento de Bolsonaro foram
retirados da mesa?
Shannon - Sim, foram — mas
pelas ações das instituições brasileiras. Acho que Trump entendeu que sua
tentativa de intervir em processos criminais no Brasil e de interferir em um
processo eleitoral no Brasil não iria prosperar.
BBC News Brasil - Mas Trump
insistiu nesse tema por várias semanas. Como essa questão perdeu relevância tão
rápido?
Shannon - Acho que perdeu
relevância principalmente porque o Brasil deixou muito claro que não iria
ceder. E a instituição brasileira em questão — o Supremo Tribunal Federal —
deixou muito claro que iria continuar com a acusação e manter a proibição de Bolsonaro
concorrer nas próximas eleições. Uma vez que isso ficou evidente, o que os
Estados Unidos poderiam fazer?
BBC News Brasil - Ao mesmo
tempo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) continua sendo recebido por
autoridades do governo americano e afirmando que as coisas estão indo bem para
o lado dele. Como analisar essas duas realidades?
Shannon - Há algumas maneiras
de ver isso. Primeiro, Trump não vai abandonar Bolsonaro. Ele o considera um
amigo com visões políticas semelhantes. Mas é interessante notar que, em todas
as comunicações com Lula, Bolsonaro não é mencionado. E não é mencionado porque
Trump sabe que sua tentativa de proteger Bolsonaro da prisão e garantir que ele
pudesse disputar eleições fracassou.
Diante disso, o que resta
fazer? Ele valoriza a lealdade e quer deixar claro que não vai abandonar
Bolsonaro — mesmo que não possa mais ajudar.
BBC News Brasil - Mas a
tentativa de Trump de influenciar o julgamento de Bolsonaro é página virada?
Shannon - Sim. Por que ele vai
fracassar de novo quando já fracassou uma vez? Trump é astuto nesse ponto. Ele
sabe quando não pode avançar em uma frente e procura outra.
BBC News Brasil - Então o
senhor está dizendo que a nova postura dos EUA está relacionada à economia e
aos impactos das tarifas, inclusive para os consumidores americanos?
Shannon - Com certeza. Veja, o
interessante sobre a presença do Brasil nos Estados Unidos é que ela é, em
grande parte, invisível para o americano médio. Mas o Brasil faz parte da vida
cotidiana de muitas pessoas.
Está no café que bebemos, nos
hambúrgueres e no frango que comemos, nos voos regionais em aviões menores
fabricados por empresas como a Embraer. E também está presente em diversas
cadeias de suprimento: alumínio, aço, suco de laranja, margarina, entre outras.
Acho que o presidente foi
exposto, por meio do setor privado americano, a uma espécie de curso intensivo
sobre o impacto que essas tarifas teriam no dia a dia de muitos americanos.
BBC News Brasil - O senhor
acha que Trump está buscando formas de recuar nas tarifas?
Shannon - Estou quase certo
disso. Acho que é nessa área que teremos novidades. Mas ficaria muito surpreso
se houvesse algum avanço sobre as sanções do tipo Magnitsky ou as revogações de
vistos.
BBC News Brasil - As sanções
aos ministros do STF serão mantidas?
Shannon - Vamos ver, pode ser
que encontrem uma saída, espero que sim. Mas acho que a principal preocupação
no momento é o impacto econômico das tarifas.
BBC News Brasil - Quando o
senhor acha que as tarifas podem ser retiradas?
Shannon - Depende do ritmo das
negociações. E, se não forem retiradas, vão ser reduzidas drasticamente ou
vários produtos ficarão isentos.
BBC News Brasil - O senhor
está certo disso?
Shannon - Tão certo quanto
alguém poderia estar sobre qualquer coisa no mundo. Afinal, se nada acontecer
com as tarifas, qual foi o motivo dessa mudança na postura?
Essa reunião na ONU foi
significativa. Trump não só encontrou Lula, mas também mencionou o encontro em
seu discurso, elogiando o presidente brasileiro. Isso foi um compromisso
expressivo. E ele seguiu adiante — como sabemos — com tuítes, ligações, e ambos
os lados trabalhando para agendar novos encontros. Isso é considerável.
BBC News Brasil - Essa
reaproximação entre Brasil e EUA ocorre ao mesmo tempo em que as relações entre
EUA e Venezuela estão se deteriorando. O senhor vê alguma conexão entre esses
dois movimentos?
Shannon - Não. No mundo de
Trump, são eventos muito separados.
BBC News Brasil - O senhor
acha possível uma ação militar dos EUA na Venezuela?
Shannon - Não sei. Acho que o
presidente e seu governo tentam apresentar as ações militares no Caribe como
operações antidrogas. Então, se houver algum ataque militar na Venezuela, ele
provavelmente será justificado da mesma forma.
O presidente começou seu
mandato disposto a negociar com os venezuelanos e encontrar um caminho. Os
venezuelanos acharam que, ao aceitar deportados e oferecer cooperação em
petróleo e gás, conseguiriam algum tipo de acordo com os EUA. Mas é importante
lembrar que Trump tentou uma mudança de regime na Venezuela no seu primeiro
mandato. E ele continua muito preocupado com o que vê como caos interno na
Venezuela.
Ele provavelmente não vê o
governo Maduro como um parceiro confiável no longo prazo. Então Trump quer
deixar claro que o governo venezuelano se mantém ou cai conforme a vontade
dele. E é notável como a região tem se mantido calada diante dessas ameaças. Só
o [presidente colombiano, Gustavo] Petro tem falado com mais contundência.
BBC News Brasil - Se houver um
ataque à Venezuela, como isso pode impactar a relação Brasil-EUA?
Shannon - Depende do tipo de
ataque. Se for contra uma base usada por traficantes, ainda assim será
duramente criticado.
BBC News Brasil - E se for uma
operação para mudança de governo?
Shannon - Será amplamente
rejeitada na região, com algumas exceções. Mas, no geral, não é algo que a
América Latina aceitaria.
BBC News Brasil - Isso poderia
arruinar a reaproximação entre Brasil e EUA?
Shannon - Criaria muitos
problemas. Mas, de novo, depende. Se a reaproximação for puramente econômica,
focada nas tarifas, ela pode continuar mesmo com um grande desentendimento
político.
BBC News Brasil - O senhor
mencionou o papel de atores privados na reaproximação entre Brasil e EUA. Como
se deu essa pressão silenciosa?
Shannon - Não sei todos os
detalhes e também não quero vincular pessoas ou empresas a esse processo. Mas
não há dúvida de que a principal fonte de informação para o presidente
provavelmente foram empresas americanas com acesso direto à Casa Branca.
Mas também há empresas
brasileiras, com forte presença e investimentos nos EUA, que têm acesso — se
não ao presidente, a pessoas ao seu redor. Isso é uma lição importante para a
diplomacia brasileira: às vezes, a comunicação mais eficaz não é de governo para
governo, mas do setor privado para o governo.
A presença do Brasil nos EUA é
impressionante, ainda que pouco reconhecida. E essa presença pode ser um canal
de comunicação poderoso em momentos de crise. Todos merecem ser parabenizados
por isso.
BBC News Brasil - Quando Trump
disse que o secretário de Estado americano, Marco Rubio, lideraria as
negociações dos EUA com o Brasil, muitos no Brasil avaliaram essa escolha como
negativa para o governo brasileiro, pois Rubio é conhecido por ser bastante
crítico à esquerda latino-americana. As posições de Rubio podem influenciar
essas negociações?
Shannon - Primeiro, ele é o
Secretário de Estado e o Conselheiro de Segurança Nacional. Ou seja, é a
autoridade mais importante em política externa. Ao designar Rubio para essa
missão, Trump está ressaltando a importância da negociação. Em segundo lugar, o
presidente já deixou claro o rumo que quer tomar: ele quer fazer mais negócios
com o Brasil e que a relação seja ótima. Rubio vai trabalhar para isso.
Isso não significa que ele e
outros membros do governo deixaram de ter preocupações políticas —
especialmente com o papel do STF na política eleitoral brasileira. Mas eles
sabem que o foco agora é avançar no lado econômico. E acho que é isso que Rubio
fará.
BBC News Brasil - Há relatos
sobre um embate em curso dentro do governo dos EUA entre um grupo mais
ideológico — do qual Rubio faz parte — e outro mais pragmático e favorável a
uma reaproximação com o Brasil. Como avalia essa disputa?
Shannon - Todos os governos
têm diferentes pontos de vista sobre questões importantes. É assim que nosso
sistema funciona. É como um problema de Física, com vetores diferentes
colidindo até sair um único vetor. Esse vetor depende da força e da influência
envolvidas.
O presidente é quem decide.
Ele ouve todos os lados e determina qual será a política dos EUA. Acho essas
diferenças saudáveis. Elas ajudam o presidente a ter uma visão completa antes
de tomar uma decisão.
EUA intensificam exercícios militares no Caribe enquanto ampliam pressão sobre a Venezuela — Foto: BBC News fonte
BBC News Brasil - Algumas pesquisas no Brasil indicam que o
conflito com os EUA foi politicamente bom para Lula, que viu sua aprovação
aumentar. A Casa Branca está ciente disso?
Shannon - Sim. Parte da
explicação dada a Trump sobre por que ele não conseguiria o que queria foram os
dados das pesquisas, que mostraram que as tarifas tiveram um impacto negativo
dramático para Bolsonaro e sua família. E também que, além de estabilizar Lula
nas pesquisas, permitiram que ele subisse pela primeira vez em muito tempo.
Isso é notável. Mas não é algo
novo para Trump — ele viu algo semelhante no Canadá após seus embates com [o
primeiro-ministro] Mark Carney e na Austrália com [o primeiro-ministro Anthony]
Albanese.
O presidente está aprendendo
que suas tentativas de se envolver na política interna nem sempre têm o efeito
esperado — às vezes têm o efeito contrário.
BBC News Brasil - Qual é sua
visão geral sobre a estratégia que o Brasil vem adotando desde o início desta
crise?
Shannon - Acho que o Brasil
seguiu o único caminho possível. Os brasileiros nunca permitiriam que uma
potência estrangeira se inserisse em um processo criminal ou determinasse quem
poderia ou não ser candidato. A questão era conseguir resistir e manter essa
posição. Sempre acreditei que daria certo.
BBC News Brasil - Muitos não
estão acostumados com o fato de o Brasil ter tanta visibilidade na agenda da
Casa Branca. Trump tem falado muito sobre o Brasil, algo raro entre presidentes
dos EUA. Ele está realmente interessado no Brasil?
Shannon - Acho que, agora,
sim. No começo do mandato dele, ele chegou a dizer, referindo-se ao Brasil e à
América do Sul: "não precisamos dessas pessoas" referindo-se a
energia e produção agrícola. Mas acho que ele mudou de ideia — primeiro em relação
ao Brasil, depois em relação à Argentina.
BBC News Brasil - Por quê? Tem
a ver com o avanço da China na região?
Shannon - Em parte sim, mas
muito disso tem a ver com questões internas dos EUA. Houve um reconhecimento
crescente de que as tarifas prejudicariam politicamente o presidente nos
próprios Estados Unidos. E esse costuma ser o fator decisivo.
Se os EUA mantivessem um
confronto prolongado com o Brasil, isso abriria espaço para a China se
aproximar ainda mais do país. O Brasil historicamente evitou ser dependente de
uma única potência. Nunca temi que o Brasil entrasse na órbita da China. Mas os
EUA e suas empresas perderiam oportunidades valiosas — e isso seria muito ruim.
BBC News Brasil - Há sinais de
que o Brasil poderia oferecer aos EUA acesso a minerais estratégicos e terras
raras como contrapartida à reversão das tarifas. A estratégia pode funcionar?
Shannon - Sim. Minerais
críticos e terras raras serão centrais no desenvolvimento e nos processos
industriais do século 21. Se Brasil, Argentina, Bolívia, Chile e outros tiverem
acesso a esses recursos, serão parceiros muito valorizados. Isso deixa o Brasil
numa posição de força para negociar.
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