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| Foto: Reprodução |
Totalmente descabida, por sua
ineficácia, a existência da prova da Ordem dos Advogados do Brasil. A sociedade
brasileira já deveria ter começado a pensar na sua extinção, e isso,
obviamente, nada tendo a ver com a importância da OAB para a garantia do exercício
profissional e as lutas democráticas. No entanto, o exame da OAB transformou-se
no fetiche que esconde duas situações, aliás, contra a democracia, para além do
aspecto político do fortalecimento de uma corporação profissional.
Em primeiro lugar, a
transformação de muitas faculdades de direito em “cursões” preparatórios para
essa prova, incentivando a noção reducionista e equivocada de que o direito
seria sinônimo de leis e procedimentos. Em segundo, a atuação de uma verdadeira
indústria de cursinhos particulares intensivos preparatórios para o exame, dos
quais participam como treinadores / adestradores ou proprietários muitos
professores das faculdades.
A própria existência de tais
cursinhos já sinaliza algo de errado com as faculdades. Afinal, de um lado,
pode-se perguntar: que contradição é essa na qual, depois do estudante passar
cinco anos numa graduação, ainda ter que fazer um curso intensivo preparatório?
De outro, lembre-se que, mesmo dispensando tal cursinho, com base na noção
equivocada de que o direito seria sinônimo de leis, as próprias faculdades
“treinam” os alunos em suas provas rotineiras do período letivo com questões
que podem ser as mesmas ou similares às de versões já aplicadas do exame da
OAB. Em sala de aula, desde o início da faculdade, os professores sempre
alertam: “Isso cai no exame da Ordem!”
Ou seja, nas faculdades, salvo
algumas exceções de professores e contextos, o estudante está sendo treinado
para fazer prova, não para compreender o que é o direito. Treinado para
“decorebas” e aprender macetes e pegadinhas do exame da OAB. Em outras palavras,
a contradição consiste, dentre outras coisas, no fato de que, ao serem
“adestrados” dessa forma, tanto na faculdade como nos cursos intensivos, isso
não significa que ele vai aprender e compreender o que é o direito, muito menos
de que ele será um bom “operador” jurídico.
Afinal, as “pegadinhas” do
exame têm a ver com minúcias das leis e procedimentos que são memorizados e que
estão nos códigos. Coisas, enfim, que o profissional vai consultar a vida toda,
uma vez ser impossível a retenção na memória do conteúdo de um Vade Mecum.
Não se vê advogado ou juiz algum sacando da própria memória um parágrafo
combinado com um inciso de um artigo do Código Tributário Nacional. Faz parte
do cotidiano profissional a consulta permanente aos códigos e às mudanças mais
recentes dessa ou daquela lei.
O exame em si é envolto numa
atmosfera de bicho-papão, tipo “vestibular da vida”, porém, nada muito
complicado. Na primeira fase, múltipla escolha, isto é, algum conhecimento e
sorte, além de resistência emocional na corrida do tempo.
Na segunda fase, considerada
mais bicho-papão, o candidato tem que responder quatro questões dissertativas e
discorrer sobre qual procedimento cabível, por exemplo, se um mandado de
segurança, ação popular ou investigação de paternidade etc., para determinada
situação hipotética. Mas tudo sendo solucionado com os macetes aprendidos na
faculdade ou nos cursinhos – e mediante consulta franqueada dos códigos na hora
da prova. O problema é que tem que saber mais sobre os macetes do que o mérito
das situações. Mais sobre as “mumunhas” do que o direito em si.
Já ouvi muita gente dizer que
o exame é necessário para que o mercado tenha profissionais habilitados e não
picaretas. Diante da crença corrente de que a prova da OAB seria o crivo
indispensável para a existência de advogados capacitados, a realidade dispensa
comentários com sua eloquência de mostrar algo diferente.
Como em qualquer profissão,
basta ver, entre muitos advogados, a existência de profissionais péssimos e
incompetentes, que, embora aprovados no exame da Ordem, não sabem nem usar
corretamente o português, falado ou escrito. Ou que já esqueceram a diferença
entre um agravo interno e um agravo de instrumento, ou entre um recurso de
embargos de declaração ou de embargos infringentes. Ou que a Vara de Execuções
Penais trata de réus condenados. Ou que ignoram o que seja duplo grau de
jurisdição.
Ou ainda – mais grave para
democracia – profissionais que desconhecem a história, a economia política etc.
Mas aí, nesses tempos de obscurantismo, já seria exigir demais, assim como
esperar que tivessem o hábito da leitura. Ou então imaginar terem a compreensão
do que está acontecendo com o Brasil e o mundo. Isso, para não dizer sobre os
salafrários e corruptos. Aqueles que compram monografia para poder se formar.
Para não dizer daqueles que acreditam que ser advogado é candidatura para ficar
rico, algum dia, com honorários de uma causa milionária.
Dentre todas as profissões, a
do advogado é a única que, sendo objeto de uma prova para atuar no mercado,
espécie de “vestibular posterior à graduação”, fica marcada com a “aura”
santificada de uma “Ordem”, aliás, como o próprio nome sugere, algo ainda da
especialização medieval por funções. Todas as profissões possuem um “conselho”.
Os advogados, uma “Ordem”.
O sujeito pode até nem exercer
a advocacia, mas só o fato de ele possuir o registro da OAB já lhe confere um
status, uma “autoridade”, espécie de “arma” ad hoc a ser sacada do
bolso do colete para alguma emergência. Muitas pessoas obtêm o registro, mas
não exercem a profissão, trabalham com outra coisa.
Além do mais, em geral, nenhum
advogado vai atuar simultaneamente em diferentes áreas, isto é, no direito
trabalhista, familiar, tributário etc. Sempre tende a se especializar ou ser
empregado em escritório especializado ou no poder público.
Nesse sentido, em vez de uma
prova como crivo fictício, talvez fosse mais adequado um sistema de ensino com
uma espécie de “residência”, assim como acontece nos cursos de medicina. O
estudante faria dois ou três anos de básico, estudando todos os ramos do
direito. A partir do início do quarto ano, ele optaria por uma área de
especialização, concluindo os dois últimos anos com um aprofundamento num ramo
específico do direito. Sairia já direto para o mercado de trabalho.
Há uma explicação de ordem
política para a existência da prova da OAB? Nesse breve texto, limitei-me às
questões relativas ao resultado prático da existência dessa prova. Também
filosófico no sentido de que direito não é sinônimo de leis. Estas resultam do
direito, e não o contrário. Mas há, sim, claro, fatores políticos que deixo
para outro artigo e como sugestão aberta também para quem quiser falar, com
mais competência, sobre o caráter político-institucional do exame da OAB.
Grosso modo adiantando, diria
que a questão política tem a ver com o fato de a OAB ser uma das entidades mais
peculiares do chamado “estado ampliado” gramisciano. Isso, além das razões
de ordem endógena da organização em si, de fortalecimento corporativista, poder
financeiro etc. Há literatura sobre isso que deixo para futuro artigo.
Álvaro Miranda é
jornalista profissional, diplomado pela Universidade de São Paulo, mestre e
doutor em Ciências, Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ
e bacharel em Direito pela Mackenzie do Rio de Janeiro. Possui especialização
em Análise de Políticas Públicas pelo Instituto de Economia da UFRJ e MBA em
Marketing pela Fundação Getúlio Vargas. É autor do livro “Tribunal de Contas no
Brasil: a falsa cisão entre técnica e política” (2020, Editora UFRJ). Autor
também do livro de fragmentos ensaísticos em prosa poética “Manual para
aforismos insolentes” e mais seis livros de poesia publicados pela Editora
7Letras nas duas últimas décadas. Trabalhou em grandes jornais diários do Rio
de Janeiro e em assessorias de imprensa e comunicação do poder público do
estado e da capital fluminense. Faz parte do quadro de docentes da Escola de
Contas e Gestão do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, onde já
atuou como assessor de imprensa e assessor de gabinete. É vice-coordenador do
Centro de Estudos do Nacionalismo Marechal Horta Barbosa, vinculado ao
Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense.
O texto não representa
necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista
diferente? Mande seu artigo para dicasdepautaggn@gmail.com.
O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.
Fonte: jornalggn

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