No sertão do Ceará, a quase 500
quilômetros de Fortaleza, um distrito do município de Saboeiro recebeu o nome
de Flamengo: um lugar onde a pobreza e a seca são presentes, mas que também é
rica em histórias de vida e amizade. As pessoas que nascem por ali são
flamenguenses, mas a maior parte da população de Flamengo é mesmo flamenguista.
O
local que começou como um sítio, hoje tem 3500 habitantes e não recebe chuva
desde maio de 2019. O site Verminosos por Futebol acompanhou a final da Taça
Libertadores no local e vai lançar o documentário “Aqui é Flamengo” no mês que
vem.
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Na medida que foram acontecendo as vitórias do Flamengo na competição, a gente
foi ganhando aquela expectativa, fomos acreditando mais. Então quando você
chega na final vitorioso é muito bom, porque você conseguiu levar aquele grito
até o momento da explosão, que é ser campeão. Pouquíssimas pessoas lá no Rio
imaginam que existe um local no Brasil, uma comunidade chamada Flamengo. E a
gente foi lembrado exatamente no momento de glória do Clube de Regatas do
Flamengo – disse o professor José Mozer Viana, que ganhou o apelido que virou
nome graças a semelhança com o zagueiro do Flamengo em 1981.
O
seu Henrique Alves Neto, que é mais conhecido como Belo, é um dos moradores
mais velhos de Flamengo. Com 28 netos e 14 bisnetos, o aposentado chegou ao
local em 1943, quando tinha apenas 6 anos. Na época, existiam apenas 11 casas
no distrito.
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A vida aqui é muito cansativa e nós estamos de “repiquete”. O cearense é duro
de morrer: ele cria rugas na testa espiando para ver se vem a chuva e todo dia
a gente amanhece vivo. O primeiro rádio chegou aqui na era de 50, 60. Era uma
novidade como uma nuvem. Era rádio, só rádio. Depois que veio a televisão –
lembra seu Henrique.
Até
2019, o distrito de Flamengo não recebia sinal de televisão. Por conta disso, a
grande maioria das pessoas foi obrigada a comprar antenas parabólicas para suas
casas. Essas antenas captavam os sinais de TV do Rio e de São Paulo e as
transmissões de jogos eram dos clubes dessas duas cidades. Por isso, é muito
difícil encontrar torcedores de times cearenses, mas fácil de achar dos clubes
paulistas e cariocas.
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Quando eu morava aqui em Flamengo, eu torcia um pouquinho pelo Fluminense, mas
não tava encaixado. Acho que a minha paixão estava ligada ao Corinthians mesmo.
Quando eu fui trabalhar em São Paulo, a paixão ficou roxa mesmo: foi afetado o
sangue na veia. Minha família era toda flamenguista – explicou Germano Alves,
dono do bar e restaurante mais conhecido do distrito.
O
futebol é uma paixão em Flamengo: na TV e na vida real. Dominguinhos da Silva
traduz esse amor pelo Rubro-Negro na beira do campo, ele é dono e técnico do
time do distrito. Eles usam as mesmas cores e o mesmo distinto do Flamengo. Mas
o campo… Esse é bem diferente do Maracanã: de terra batida e com linhas bem
tortas, ele recebe os amistosos e campeonatos do time multicampeão.
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Eu tenho esse time há mais de 15 anos. É difícil mexer com futebol quando a
gente é pobre. Futebol é gostoso, o melhor esporte que existe. Mas as condições
financeiras são complicadas: a gente tem que colocar dinheiro do nosso bolso
pra jogar, porque não têm ajuda nenhuma. Eu trabalho na roça, longe daqui.
Quando é final de semana, venho para o jogo, marco o campo, organizo as coisas…
– afirma Dominguinhos.
O
distrito é bem humilde: com casas simples e um clima bem de interior. Quando
vamos para a zona rural, a pobreza fica mais evidente. Com o solo muito
ressecado – a última vez que choveu no local foi em maio do ano passado -, as
plantações muitas vezes não vingam e os animais morrem de sede. O acesso ao
local é mais do que precário, com enormes buracos e muitas pedras na estrada de
terra batida. Para ganhar dinheiro e melhorar as condições das famílias, muitos
homens vão trabalhar como vendedores em outros estados.
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A fonte de renda aqui é precária. Então o jeito que a gente encontrou foi pegar
a estrada e viajar para os estados vizinhos para trabalhar. Uns chamam de
camelô, de crediário e até de mascate. Esse é o meio que 80% da população vive
por aqui – explicou Silas Braga.
Na
final da Taça Libertadores 2019, quando o Flamengo derrotou o River Plate de
virada e conquistou o bicampeonato, o jornalista Rafael Luis Azevedo e a
publicitária Larissa Cavalcante acompanharam o jogo no distrito. Testemunharam
a tensão e a emoção dos torcedores – e secadores – e produziram um documentário
sobre o local, que será lançado em março deste ano.
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Tanto faz nascer no Ceará ou no Rio, eles são tão flamenguistas quanto quem
nasceu perto da Gávea. Eles têm uma relação com o time mais genuína do que as
pessoas que moram nas capitais – falou Rafael.
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Quando o Flamengo foi campeão da Libertadores, eu estava em Luzilândia, no
Piaui. Estava lá assistindo ao jogo e foi uma emoção única, porque no título de
81 eu ainda não existia e eu fiquei aproximadamente uns 15 ou 20 dias doente da
garganta, depois da final do ano passado – lembra Silas.
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Meu neto gosta de jogar bola e é Flamengo, quase todo mundo aqui é… O time eu
não sei, mas a camisa é do Flamengo – finaliza seu Henrique.
Fonte: Site Miséria