Por José Flávio Vieira.
Um dia, ouvindo uma saudação minha a um ex-professor, ela confidenciou a amigos
que gostaria que fosse eu o escolhido par saudá-la em alguma
solenidade. Achou, em meio a minhas palavras laicas, mas banhadas de poesia,
que havia alguma coisa de sagrado nelas, afinal a poesia é sempre um
tipo de prece, de oração .
O tempo passou, encontramo-nos tantas e
tantas vezes, pelas ruelas da vida e, infelizmente, o momento da saudação nunca
chegou.
Hoje, ela partiu e as palavras já não ressoam e já não parecem ter força
ou sentido.
A
rigor, diante de uma vida tão longa e pródiga, nem deveríamos ter motivos para
blues e tristezas, mas para celebração pela dádiva de uma existência tão
fulgurante. Nossa madre foi uma criatura ímpar. Profundamente
espiritualizada, dirigiu os destinos de muitas gerações de
caririenses, sem ranço, com profunda compreensão dos conflitos de idade, usando
sempre o amor como mola mestra do educar. Soube acompanhar os tempos e suas
mudanças, vezes cataclísmicas e estonteantes, sem estardalhaço, com
os pés fincados sempre no chão da sua religiosidade, mas com os olhos fitos no
futuro. Lembro que convidado para fazer uma palestra no seu colégio,
sobre Gravidez na Adolescência, alguns professores preocuparam-se sobre a
necessidade de apresentar imagens anatômicas e meios anticonceptivos, temendo
mexer com sua susceptibilidade. Madre Feitosa assistiu a toda a apresentação com
uma tranquilidade monástica, em nenhum instante demonstrou qualquer excessivo
pudor ou mostrou-se incomodada com as fotografias e as imagens
projetadas. Sabia que, no fundo, o amoral reside na alma das pessoas e nas suas
disformes relações com o mundo e não em frágeis palavras ou meras ilustrações.
Sempre
imaginei que a possibilidade de melhorarmos o planeta depende do nosso esforço
em ampliar o sentido de família. Quando o homem conseguir entender que somos
parte de uma imensa parentela, muito além do simples clã sanguíneo, e que nossa
casa chama-se Terra, que somos todos irmãos, independentemente de cor, de raça,
de reino, de religião, de condição social, a sobrevivência sustentável do
planeta estará assegurada. Nossa Madre não teve filhos biológicos,
mas tornou-se uma invejável matrona bíblica, pelo simples fato de
adotar milhares de alunos como rebentos seus. Cuidou-os e
orientou-os utilizando o mais poderoso instrumento pedagógico: a compreensão
substituindo a punição; o diálogo aberto ao invés do autoritarismo; a força do
exemplo antepondo-se ao vazio das palavras. Não bastasse isso, nossa
Madre Feitosa fez-se o esteio espiritual de muitos pais e amigos, orientando
vidas, mostrando caminhos, confortando e amparando pessoas nas fases mais
tenebrosas de suas trajetórias. Próximo dela tínhamos a certeza de que sua
espiritualidade fluía das regiões mais abissais da sua alma. Não era um simples
verniz, um mero adereço. Era uma pessoa de muitas certezas e poucas dúvidas. A
autoridade saltava do seu sorriso, das suas palavras doces, pausadas e medidas.
E foi, certamente, esta centelha interior que a manteve lépida,
atuante, vívida por quase um século.
Queria
ter dito todas estas palavras antes da solenidade final a que todos um dia
estaremos sujeitos. Mas teimo em encontrar no meio do desapontamento da perda,
motivos de celebração e de regozijo. Turva-me a tristeza da impermanência, mas
louvo e congratulo-me com vida por nos ter privilegiado por tanto tempo com sua
presença. Destituídos da couraça material, sobrevivemos nas obras que
edificamos. Alguns esculpem na lâmina das águas, poucos na dureza magmática das
rochas. Madre Feitosa burilou almas, lavrou na seara do espírito. Seu sorriso e
seu doce continuarão vivos , fulgurantes em todos aqueles que um dia dela se
acercaram. A luz com que ela iluminou nossos caminhos era um mero reflexo da
centelha do divino que dela se irradiava.