Por Dr. André Fusco, médico-psicanalista, especialista em Ergonomia Mental e consultor em saúde mental no trabalho
Recentemente, um dado me
chamou a atenção: a violência contra médicos subiu 68% em dez anos, segundo o
Conselho Federal de Medicina (CFM). No caso da enfermagem, 80% dos
profissionais já sofreram agressões no ambiente de trabalho, de acordo com o
Coren-SP. Muitos são afastados por crises de ansiedade e síndrome do pânico.
Outros continuam trabalhando, mesmo com medo.
É evidente que essas agressões
precisam ser tratadas com rigor: proteger os profissionais e punir os
agressores é necessário. Mas, quando olhamos apenas para essas ações imediatas,
sem examinar a estrutura que está por trás, caímos novamente em um ciclo de
violência e adoecimento que atinge a todos, enquanto as verdadeiras causas,
organizacionais, institucionais e estruturais, permanecem intocadas. No caso do
SUS, por exemplo, o que vemos são pacientes desesperados, frustrados por falhas
sistêmicas de atendimento, descarregando sua dor em quem está na linha de
frente e impactando a saúde mental desses profissionais.
Esse padrão, em que vítimas
trocam acusações enquanto as falhas estruturais permanecem intactas, não se
limita à saúde pública. Dentro das empresas, o mesmo enredo se repete:
adoecimento crescente, busca por culpados e pouca disposição para analisar a raiz
do problema. O que falta é entender que essa nova visão pode ser muito mais
promissora para os resultados do negócio.
De culpar o colaborador a
vilanizar o gestor
Durante muito tempo, nossa
forma de lidar com o sofrimento mental no trabalho seguiu um padrão defensivo:
em vez de encarar a doença como reflexo de falhas organizacionais, preferimos
responsabilizar quem adoece. É o que chamamos de Defesa Psíquica, um mecanismo
coletivo que protege a lógica vigente. Afinal, admitir que o trabalho adoece é
admitir que todos estamos vulneráveis. E isso desestabiliza.
Assim, o problema deixa de ser
o ambiente ou a cultura e passa a ser o indivíduo. O doente torna-se um
incômodo. É mais fácil dizer que ele está fragilizado, ansioso ou improdutivo
por falta de autocuidado do que admitir que há algo errado com as regras do
jogo. Damos a ele benefícios de meditação, terapia e atividade física e, quando
o adoecimento persiste, surgem a culpa e o constrangimento. O doente acha que
sua condição se deve apenas à falta de medicação ou ao sedentarismo,
desconsiderando a influência do contexto de trabalho.
Mas à medida que os casos se
multiplicam, esse mecanismo de defesa começa a falhar. Percebemos que não é
mais possível ignorar o adoecimento generalizado, e então buscamos outro
culpado. O novo alvo é o gestor.
Um estudo do UKG Workforce
Institute mostrou que 69% das pessoas acreditam que seus gestores impactam mais
sua saúde mental do que seus médicos ou terapeutas. Isso é significativo, mas
não justifica transformar o líder em bode expiatório de um sistema doente.
A figura do líder passa a
concentrar todas as causas do sofrimento nas equipes. Em vez de questionarmos
as regras que degradam as relações de trabalho, escolhemos um novo vilão. Se um
colaborador é rebaixado em uma avaliação forçada por ranking e tem sua carreira
prejudicada, dificilmente ele contesta os critérios. Ele responsabiliza quem
aplicou a sistemática. O líder vira o rosto do problema, ainda que não tenha
autonomia para mudar o modelo.
Na prática, muitos líderes que
reproduzem comportamentos autoritários ou insensíveis também estão sob pressão:
metas sem valor humano atrelado , rankings competitivos, vigilância constante
de performance. Ser líder acaba sendo um fator de risco para o adoecimento.
Eles adoecem por assumirem sozinhos toda essa responsabilidade, da mesma forma
que os trabalhadores adoecem ao acreditarem que sua condição se deve
exclusivamente a falhas pessoais.
Esse é o ponto central da
psicodinâmica do trabalho, teoria desenvolvida por Christophe Dejours: é a
forma de organizar o trabalho que pode gerar sofrimento. Quando o colaborador
não encontra sentido no que faz, não pode expressar seus limites ou é punido
sistematicamente, o adoecimento mental é inevitável.
Para romper esse ciclo,
precisamos fazer justamente o oposto: diminuir os mecanismos de busca por
culpados. Só assim teremos espaço para aceitar o sofrimento e, a partir disso,
transformar as regras para gerar um trabalho mais saudável e com propósito.
Transformar regras, não só
comportamentos
Em um trabalho de consultoria,
presenciei de forma clara como a estrutura pode até mesmo sabotar iniciativas
da saúde ocupacional. Os funcionários de um banco que retornavam de licença
médica frequentemente voltavam a se afastar pouco tempo depois. A empresa havia
implementado protocolos de retorno, acompanhamento médico e suporte formal. Mas
algo essencial estava fora de sintonia: a coerência.
Na prática, quando um
colaborador retornava com restrições, o gestor da equipe precisava trabalhar
ainda mais para atingir a meta total, como se acolher o retorno significasse
uma punição indireta. O sistema, sem querer, transformava o gesto de acolhimento
em risco para o próprio gestor.
A virada veio com uma mudança
simples, mas estrutural: o retorno do profissional deixou de representar uma
meta extra para o gestor. As contribuições do colaborador em reabilitação
poderiam somar às entregas da equipe, sem a cobrança imediata de uma performance
adicional. Afinal, é preciso respeitar o ritmo de quem está retornando e isso inclui permitir um período gradual de
reintegração.
O impacto foi imediato: as
reincidências caíram significativamente e os relatos de acolhimento aumentaram.
Mais do que encontrar
culpados, é hora de mudar a lógica do trabalho
O que vemos na saúde pública
se repete nas empresas: vítimas trocando acusações, enquanto as falhas
organizacionais seguem intactas. O foco excessivo em punir indivíduos, ainda
que necessário em alguns casos, não resolve
o problema se as regras que sustentam o sofrimento permanecerem as mesmas.
Ergonomia Mental significa
olhar para essas regras. Significa entender que saúde mental não é apenas uma
responsabilidade individual. É coletiva e estrutural, em direção a um trabalho
mais saudável para todos.
A verdadeira mudança começa
quando paramos de perguntar “quem é o culpado?” e passamos a perguntar “o que
precisa mudar?”. Essa virada de chave traz muito mais crescimento sustentável
para a empresa ou instituição pública do que quando opera por modelos ultrapassados.
Sobre o Dr. André Fusco
Dr. André Fusco é
médico-psicanalista e consultor de saúde mental para empresas. Graduado pela
USP e com mais de 20 anos de experiência, é embaixador pioneiro do conceito de
Ergonomia Mental no Brasil. Por meio da Psicodinâmica do Trabalho, desenvolveu
uma metodologia para diagnosticar e identificar as causas de problemas
relacionados à saúde mental, além de propor soluções eficazes para desafios
complexos nessa área.
Mais informações em:
https://andrefusco.com.br/
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