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| Foto: Reprodução |
O
dia 24 de maio marca o nascimento da beata, conhecida pelos episódios em que
hóstias se transformaram em sangue. Movimento pede mais atenção à memória da
mulher, que foi retratada historicamente como coadjuvante.
Os
eventos da trajetória de uma mulher negra em um pequeno povoado do interior do
Ceará levaram a uma forte devoção popular perpassada por controvérsias e
centrada na figura do padre Cícero Romão Batista. Estudiosos e devotos defendem
um olhar mais atento para a memória da beata Maria de Araújo, protagonista dos
episódios em que as hóstias viraram sangue em sua boca.
No
dia 24 de maio, discussões e eventos fazem memória à data do nascimento da
beata, cuja imagem deve ser colocada ao lado do padre Cícero nas repartições
públicas de Juazeiro do
Norte que trazem a representação do “santo popular”. É o que prevê lei
municipal aprovada em 2021 no município, situado na região do Cariri.
Na data de aniversário da
beata, o g1 conversou
com estudiosos sobre Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo e traz
detalhes conhecidos sobre a vida da beata.
Início
da vida de Maria de Araújo
O
povoado de Joaseiro era um distrito do Crato, no Cariri
cearense. Era o lugar que depois viraria a cidade de Juazeiro do Norte. No
local, morava o casal Antônio da Silva Araújo e Ana Josefa do Sacramento, vinha
de uma família pobre de negros e mestiços.
Não
é possível precisar o ano em que Maria de Araújo nasceu, pois só foram
encontrados os registros de nascimento dos seus onze irmãos, relata Fátima
Pinho, historiadora e professora da Universidade Regional do Cariri (Urca). Por
isso, a estimativa é que ela tenha nascido no dia 24 de maio entre os anos de
1861 e 1863.
Em
uma carta de padre Cícero, ele relata que conheceu Maria ainda criança, quando
ela tinha entre oito e dez anos. À época da primeira comunhão, o sacerdote
percebeu na menina dotes especiais e se tornou um diretor espiritual. Assim, ela
recebeu do sacerdote o conselho de dedicar a vida à religião.
Visões,
estigmas pelo corpo e outros eventos espirituais já haviam sido relatados em
dois jornais de Fortaleza, com notícias sobre uma “virgem piedosa”.
“Entre
esse encontro do padre com a beata até a ocorrência do sangramento da hóstia,
tem relatos de Maria de Araújo tendo êxtases, colóquios e manifestações
místicas”, aponta Fátima Pinho.
Viagens
espirituais, sonhos e profecias foram experiências relatadas pela própria beata
nos depoimentos que ela daria à Igreja Católica anos depois.
"Milagres
de Juazeiro"
Os
episódios que mudaram a história da região começaram no ano de 1889, quando a
beata teria entre 26 e 28 anos.
Na
sexta-feira antes do Carnaval daquele ano, a jovem estava em oração com outras
mulheres pedindo por um bom período de chuvas na região. Ela participava de uma
novena e recebeu a comunhão pelas mãos do padre Cícero ao fim das orações,
conforme detalha Dia Nobre, escritora e historiadora.
Na
boca de Maria de Araújo, a hóstia se transformou em sangue, segundo os relatos
da época. “A partir desse momento, ela começa a manifestar esse sangramento
todas as quartas e sextas-feiras durante o período de dois anos, mais ou menos,
até meados de 1891”, complementa Dia.
Conforme
complementa Fátima Pinho, o fenômeno se repetia mesmo quando ela recebia a
comunhão de outros padres. Logo, os “milagres do Juazeiro” começaram a ficar
conhecidos por aqueles que acreditavam na santidade de Maria de Araújo.
A
repercussão pelo mundo
As
notícias sobre os milagres chegam aos jornais em junho do mesmo ano,
repercutindo em cidades como Fortaleza, Manaus, São Paulo e Rio de Janeiro.
Esta
rápida disseminação é atribuída ao envio de cartas e artigos de José Marrocos,
homem culto e religioso que acreditava na veracidade dos milagres. Natural do
Crato, ele era jornalista e primo do padre Cícero.
Outro grande divulgador foi o
padre Francisco Rodrigues Monteiro, reitor do Seminário do Crato. Acreditando
no milagre, ele escreveu uma carta ao bispo diocesano do Ceará, dom Joaquim
José Vieira, e organizou uma primeira romaria à casa da beata no mês de julho.
Ele reuniu cerca de 3 mil pessoas neste primeiro momento, comenta a
pesquisadora Dia Nobre.
Por dois anos, a Igreja não se
manifestou publicamente sobre o assunto, enviando apenas cartas ao sacerdote e
pedindo que ele não divulgasse os eventos.
Em 1891, outro evento
repercutido na imprensa brasileira foi a declaração de um médico carioca que
havia se mudado para o Crato. Após examinar a beata, ele afirmou que os fatos
envolvendo Maria de Araújo eram extraordinários.
Periódicos de outros países
também começam a divulgar cartas e testemunhos de pessoas que quiseram visitar
a terra da “santa beata”.
É a partir deste ponto que a
Diocese do Ceará busca ouvir o depoimento do padre Cícero pela primeira vez e
declara que os acontecimentos de Juazeiro não são milagrosos.
Enquanto isso, as notícias
continuaram a circular com esforços do jornalista José Marrocos. Na região, os
relatos circulavam na oralidade, e a casa da beata virou ponto de peregrinação,
assim como a casa do padre Cícero.
Mesmo
sem o reconhecimento oficial, a população queria conhecer a cidade como “terra
santa com um padre santo e uma santa virgem”.
As
apurações oficiais
Uma
comissão nomeada pela Igreja foi até o povoado. No período, a beata Maria de
Araújo passa por uma série de exames médicos e interrogatórios, que se estendem
aos padres, personalidades e outras beatas da região.
Descartados
problemas mentais e físicos na beata, os eventos são chamados de
extraordinários mais uma vez. A Igreja não aceita o relatório desta comissão,
afirma a historiadora Fátima Pinho. Uma segunda comissão é nomeada pela
diocese.
O
inquérito liderado por um pároco de Quixeramobim teve métodos duvidosos,
conforme a historiadora Dia Nobre.
“Ele
prende a beata Maria de Araújo dentro da Casa de Caridade. Há relatos de que
ele a deixou jejuando a pão e água, que ele a mantinha com a boca aberta por
muitas horas, de joelhos nos milhos. Então tem aí uma tortura dessa mulher para
que ela negasse os fenômenos ou dissesse que ela produzia esses fenômenos de
forma falsa”, conta.
O
resultado da segunda comissão diz que os eventos são um embuste. A reação é uma
pressão popular e de parte do clero local.
Um
padre da primeira comissão traduz os depoimentos colhidos para o italiano e
envia a Roma. Ao mesmo tempo, o bispo à frente da Igreja no Ceará recorre ao
Vaticano na esperança de uma solução que acabe com as romarias em devoção a
Maria de Araújo.
Em
posse dos depoimentos e inquéritos, um relatório da Congregação para a Doutrina
da Fé, representando a Santa Sé, reafirma a negação dos milagres e pune os
envolvidos: suspensão para os padres e isolamento social para a beata.
O
papel do padre Cícero durante os processos foi de defesa da beata. Para Fátima
Pinho, isso demonstra que ele teria sido o primeiro devoto das manifestações
divinas em Maria de Araújo, se recusando a se retratar para reverter a punição
determinada pela Igreja.
O
caso de Maria de Araújo coincide com o período de “romanização” na Igreja,
fruto das discussões do Concílio Vaticano I, de 1869 a 1870. Conforme Dia
Nobre, a reforma buscava um afastamento das vivências místicas e práticas
populares, nas quais os fiéis estabeleciam relações com as divindades sem a
mediação da Igreja.
A
historiadora relata ainda que um caso semelhante de sangramento da hóstia
aconteceu no interior da França. A diferença seria que os fenômenos da beata
Matilda não encontraram defensores no clero local, com um fim rápido das
romarias e do culto à religiosa.
Um
último comunicado da Santa Sé sobre o caso de Juazeiro foi em 1898, reiterando
que a beata deveria ser afastada e que medalhas, orações e objetos de devoção a
ela deveriam ser queimados.
Uma
mulher vista como coadjuvante
Êxtases,
colóquios divinos e aparição de estigmas no corpo foram sinais reconhecidos
pela Igreja em casos de mulheres europeias, como a santa italiana Catarina de
Sena.
A
falta de reconhecimento da beata cearense é atribuída a ideias excludentes.
Conforme Fátima Pinho, a frase de um padre que circulou na época dizia que
Jesus jamais sairia da Europa para derramar seu sangue na boca de uma mulher
pobre e feia.
“O
fato acontecia num povoado do interior do Ceará, não era nem uma vila. Era
uma mulher pobre, negra, analfabeta no final do século XIX, no país que tinha
abolido a escravidão há pouco tempo. O padre Cícero vai ter uma repercussão
muito maior, inclusive na imprensa. Era um homem branco dos olhinhos azuis”,
compara a pesquisadora.
Nos
anos iniciais, o povo das primeiras romarias tinham como figura central a beata
Maria de Araújo e a devoção ao Sangue Precioso de Jesus, que brotava da hóstia
e dos estigmas no corpo dela. A partir de 1892, as peregrinações voltaram o
foco para Nossa Senhora das Dores.
Um
elemento importante para que a memória da beata fosse esquecida foi uma
proibição voltada aos leigos: eles só poderiam ter acesso à confissão e aos
demais sacramentos se declarasse não acreditar nos milagres da beata.
“Naquele
contexto, você dizer para o católico que ele não tem direito ao sacramento, é
algo extremamente grave. O que estava em jogo era a vida após a morte, a salvação
eterna. Isso vai contribuir para o esquecimento dela na memória local”, conta
Dia Nobre.
Assim
como no nascimento, os registros da morte de Maria não deixam certezas, com a
informação apenas do nome e da data. Ela tinha saúde frágil e faleceu em 17 de
janeiro de 1914, no contexto da Sedição de Juazeiro. O confronto armado entre
as oligarquias cearenses e o Governo Federal resultou em invasões no Crato e no
Juazeiro.
Em
1930, o túmulo de Maria de Araújo foi destruído. Segundo a historiadora, isto
foi feito a mando do monsenhor José Alves de Lima, vigário local que não
dispunha de autorização legal. Ficaram apenas restos do cabelo e o cordão de
São Francisco, com o qual ela havia sido enterrada.
Um
movimento pela memória da beata
Em
2004, uma campanha na região do Cariri espalhou um cartaz com a foto de Maria
de Araújo e a mensagem “Procura-se”. O grupo de artistas chamava atenção para o
fato de que, até hoje, o destino dos restos mortais da beata não é conhecido.
Os
esforços para resgatar o protagonismo da beata na história começaram em 1989,
com um simpósio que marcou o centenário dos milagres a ela atribuídos.
Atualmente,
a figura histórica inspira celebrações nas datas que marcam o nascimento, a
morte e o início dos milagres.
O Movimento
pela Reabilitação da Memória da Beata Maria de Araújo se fortaleceu a partir de
2014, reunindo acadêmicos, artistas e grupos culturais interessados em
ressaltar a importância da beata para todos os acontecimentos que transformaram
Juazeiro do Norte em um destino de romeiros e manifestações da devoção popular.
Fonte: G1

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