Celso Pinto definiu sua carreira com um ‘não’.
Morava em Londres, onde era correspondente da “Gazeta Mercantil” no início de
1994, quando recebeu, por telefone, o convite para integrar a equipe econômica
que criaria o Plano Real. Seria o cronista das acaloradas discussões que
pautaram a gestação do plano. Conhecia alguns integrantes daquela equipe desde
quando era calouro da sociologia na Universidade de São Paulo (USP), no início
dos anos 1970, e outros, desde os anos finais do governo João Figueiredo, quando
começou a cobrir as negociações da explosiva dívida externa.
O portador do convite, o economista Pérsio Arida,
seu contemporâneo da USP, que acabaria por se tornar presidente do Banco
Central, havia recebido a incumbência aprovada por unanimidade na equipe, a
começar do então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso. Não queriam um
assessor de imprensa, mas um jornalista que pudesse testemunhar, com acesso
irrestrito a todas as discussões e documentos, os vaivéns e as escolhas feitas
ao longo da elaboração do plano para, posteriormente, escrever um livro.
Tratava-se do mais ambicioso plano já feito num país escaldado por sucessivas
tentativas de estabilização. Aquela que parecia uma oportunidade única, no
entanto, foi descartada por Celso Pinto.
“Ele julgou a proposta fascinante, mas argumentou
que o envolvimento com o governo, qualquer governo, afetaria a neutralidade que
um jornalista deve ter”, contou Arida na apresentação do livro “Os desafios do
crescimento, dos militares a Lula” (Publifolha, 2007), coletânea de artigos do
jornalista organizada por Oscar Pilagallo.
Foi graças a essa independência que Celso pôde sair
na frente com o alerta contra as armadilhas do Plano Real, como diz a
economista Eliana Cardoso no prefácio da coletânea de artigos: “Celso Pinto foi
um dos primeiros jornalistas a romper o silêncio mantido pela imprensa sobre a
bomba que se armava com a âncora cambial.”
A experiência em Londres, onde mantinha uma sala no
prédio do “Financial Times”, abrira, em seu conhecimento de economia
brasileira, uma janela para os personagens e as nuances das finanças
internacionais, o que lhe deixava, aos 43 anos, na condição de mais completo
jornalista econômico de sua geração. Por isso, a expectativa não só da redação
mas das fontes do jornal era que Celso, ao retornar, assumiria a direção de
redação da “Gazeta Mercantil”.
O dono do jornal, no entanto, tinha outros planos
e, ante outra curva da história, Celso tomou o rumo da “Folha de S.Paulo”, a
convite de Octavio Frias, seu principal acionista. Era um retorno, mais de 20
anos depois, ao jornal onde estreara na carreira. Aos 21 anos, o estudante de
sociologia da USP, que usava rabo de cavalo, era pianista discípulo de
Thelonius Monk e tinha poster de Fidel Castro no quarto, aceitou a missão de
acompanhar as cotações de mercadorias que vinham do interior e de outros
estados. “Foi possivelmente o primeiro especialista em commodities da imprensa
brasileira”, lembra Matías Molina, seu primeiro editor e testemunha das ameaças
que chegou a receber por informações que não agradavam os atravessadores e o
levaram a assinar algumas reportagens com pseudônimo.
Cinco meses depois, o foca seria enviado para
cobrir reunião da Organização Internacional do Café (OIC) em Londres, num
jornal que, por restrições de custo, praticamente proibira viagens
internacionais. Além do primeiro aumento de salário, o jovem jornalista
arrancaria, daquela viagem, uma entrevista com a atriz Vanessa Redgrave,
trotskista e candidata pelo Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Naquela
eleição, o Partido Trabalhista desbancaria o Partido Conservador do poder.
Vanessa não seria eleita, mas Celso conseguiu publicar uma página inteira numa
edição dominical da “Folha de S.Paulo”, espaço pouco usual para reportagens
sobre a esquerda durante a ditadura.
A opção de Celso pelo jornalismo começou a ser
percebida pela família quando, aos 12 anos, o menino guardou a primeira página
da “Folha de S.Paulo” do dia em que nascera sua irmã caçula, Stela, hoje
jornalista e editora de Carreira do Valor. Filho do meio de Luiz
Celso Pinto, comerciante baiano estabelecido na capital paulista, e de Wanda
Campos, professora campineira, Celso de Campos Pinto nasceu em São Paulo, em 20
de janeiro de 1953. Alfabetizado pela avó Zuleika, em casa, aos cinco anos,
estudou no Colégio Dante Alighieri, antes de tomar o rumo da USP e, depois, da
Faculdade Cásper Líbero, onde, cursaria jornalismo.
Celso tinha 23 anos quando aceitou o convite da
“Gazeta Mercantil” para ser editor de Finanças e de Nacional, esta uma editoria
responsável pela macroeconomia. A economia brasileira saía do milagre para
mergulhar na instabilidade sem fim que marcaria os anos 1980. Transferido para
Brasília, em 1981, apurou o faro na cobertura das intermináveis negociações com
as missões do FMI e sucessivos planos econômicos. Estava no encalço dos dois
maiores entraves da conjuntura econômica, a inflação e a dívida externa
fermentada por juros de dois dígitos.
Em “Aventura e Agonia — nos bastidores do Cruzado”
(Cia das Letras, 1987), Carlos Alberto Sardenberg, então assessor do ministro
do Planejamento, João Sayad, conta que o governo José Sarney mandara o ministro
Dilson Funaro para Montevidéu — e atraíra Celso para a cobertura — para desviar
o jornalista das pistas que já começara a seguir em Brasília e poderiam levá-lo
a furar o lançamento do Plano Cruzado em 1986.
Celso ia muito além dos corredores da tecnocracia.
“Nós, jornalistas, circulávamos o dia todo, em busca de informações no andar da
Seplan onde ficavam os gabinetes dos principais assessores do ministro Delfim
Netto e onde se preparavam as bases das negociações com o FMI, nos últimos anos
do governo Figueiredo. No fim do dia, Luis Paulo Rosenberg e José Augusto
Savasini o chamavam para sua sala e durante horas conversavam sobre o que se
passara. Celso era mais que o entrevistador, era um interlocutor inteligente e
perspicaz, capaz de traduzir no jornal do dia seguinte de forma clara o tema
que trataram. A nós, repórteres, restava ler na ‘Gazeta’ do dia seguinte o
andamento das negociações com o Fundo”, lembra Vera Brandimarte, foca do
“Jornal de Brasília” à época, e diretora de redação do Valor nos
últimos 17 anos. Celso a conheceu nas pautas dos corredores da Seplan e a
convidou para trabalhar na “Gazeta”. Uma relação profissional duradoura e que o
levaria, muitos anos depois, a convidá-la para acompanhá-lo no desafio de criar
o jornal que seria o concorrente da “Gazeta Mercantil” e ganharia a disputa.
A predileção, na versão de uma de suas mais
próximas fontes, Pérsio Arida, tinha começo, meio e fim. “Celso Pinto cultivava
um estilo próprio. Nas suas matérias não se lê a reconstituição do ambiente em
que as entrevistas foram feitas. Não há nenhuma observação sobre a psicologia
ou a figura do entrevistado, nem sobre a dinâmica da entrevista, se o
entrevistado vacilava diante de uma pergunta inesperada ou se respondia de
imediato, se a entrevista foi curta ou longa.”
A distância de Celso do Novo Jornalismo, como
definiu Arida, os aproximou de economistas que tinham na objetividade de seu
campo de estudo e trabalho uma de suas mais arraigadas crenças: “Em vez de
entrevistar, conversava. Só escrevia quando se assenhoreava do assunto. E sua
forma de escrever era característica — frases curtas e articuladas, raciocínio
passo a passo, explicação cristalina. O objetivo era transmitir ao leitor o
raciocínio de suas fontes, as premissas e informações que utilizavam, para que
o leitor pudesse entender o propósito (ou o despropósito) das políticas que
viriam a afetá-lo na sua vida cotidiana.”
O estilo ganhou régua e compasso na coluna que
assumiu na “Folha”, em 1996. De lá sairia, quatro anos depois, para encabeçar o
projeto do Valor Econômico, a criação de um jornal a partir do
zero. A oportunidade surgiu pela soma de dois ‘nãos’, um quando recusou o
convite para integrar-se à equipe do Plano Real e outro quando foi preterido
para dirigir a “Gazeta Mercantil”, oportunidade que aparece na vida de
jornalistas como um cometa Halley. E Celso a abraçou quando os grupos Globo e
Folha o escolheram para criar o Valor Econômico. Sob o comando de
um jornalista que sempre colocou a credibilidade da notícia em primeiro lugar,
o Valor logo se transformaria no principal jornal de economia
e finanças do país.
O lançamento do Valor deu-se em
plena bolha da internet, no ano 2000, quando muitos previam o fim dos jornais.
Três anos depois, com maxidesvalorização do câmbio, que colocou em dificuldade
muitas das grandes empresas brasileiras, a imprensa também enfrentaria sua
maior crise em meio século, na definição de Matías Molina, editor de Celso na
“Folha” e na “Gazeta”, além de autor de “História dos jornais no Brasil” (Cia
das Letras). O Valor sobreviveria à crise e se consolidaria em
poucos anos como a principal fonte de informação da comunidade financeira e
empresarial do país.
Antes dessa volta por cima, porém, Celso já
começaria a enfrentar seus primeiros problemas cardíacos. Em 2001, aos 48 anos,
enfrentaria uma cirurgia para a colocação de pontes de safena que o levou a
mudar hábitos com uma vida menos sedentária e um severo regime alimentar. Menos
de um ano depois, porém, nova intervenção se fez necessária para colocação de
stent, e com ela veio a recomendação médica para reduzir o ritmo de trabalho e
de tensão.
Celso perdeu 34 quilos, sem abandonar o vinho, o
tênis e a redação. No domingo, 25 de maio de 2003, saiu de casa cedo para jogar
com amigos numa quadra alugada no Morumbi. Sofreu uma parada
cardiorrespiratória durante o jogo e foi levado pelos parceiros de tênis, na
contramão da Av. Morumbi, ao hospital São Luís. Ao longo dos 17 anos seguintes,
travou combate pela vida. Vítima de uma infecção no pulmão, deixa a jornalista
Célia de Gouvêa Franco, sua companheira por 41 anos, os filhos Pedro e Luís, e
um neto, Davi.
