Fitando-me os olhos, dizia minha mãe: não faça danações
e cuide da casa. Estou indo fazer compras e quando voltar, quero encontra-la do
jeito que a deixei.
Sim, senhora.Respondia-lhe com ar de responsabilidade.
Antes, porém, já havia a mesma medido meu pé com um pequeno barbante, que dado
o nó nas extremidades, marcava exatamente o tamanho que deveria ter o meu novo
chinelo. “Compra aquele dos cavaleiros do zodíaco”, indagava-lhe com fervor.
“Vou comprar o mais barato”. Respondia-me arqueando as sobrancelhas.
Ainda que
preocupado, por achar que não seria o chinelo tal como queria, esperava-lhe ansiosamente
escanchado na janela.
De olhar fixo no final da rua, onde a qualquer momento
haveria de apontar minha mãe. Após fatídica espera, salto da janela e de uma
carreira só, alcanço-lhe antes que chegasse em casa. La estava meu chinelo, ainda
posso sentir aquele cheirinho de borracha, macio, confortável e no tamanho
certo. Mal podia esperar a hora de inaugurar o meu novo pisante.
Ao cair da
tarde, transformava-se a rua numa grande brinquedoteca ao ar livre, onde pega-
pega, esconde-esconde, travinhas e carrinho de rolimã, faziam a nossa alegria.
Assim sendo, não demorava e logo o cabresto do chinelo vinha a quebrar. Comprar
um novo estava fora de cogitação. Recondiciona-lo seria a solução e todos nós
já sabíamos como fazer. Nada que um prego atravessado não resolvesse.
E ali estava,
pronto para as próximas aventuras. Até que chegasse o final do ano, para que
assim, um novo chinelo pudesse ganhar. Fincando o velho calçado de sobressalência
para possíveis emergências. Não era vergonhoso, nem tampouco costume exclusivamente
meu. Tal prática era comum, assim como também era comum consertarmos as demais
coisas, aproveitando-as até por mais tempo. Caso aparecesse algum problema no
chinelo, na calça, na mochila ou até mesmo na bola, sempre haveria uma cola, um
remendo ou um prego que resolvesse. Chamávamos isso de “fazer valer a pena”.
Hoje, chamam de mesquinhes, breguice ou qualquer outro adjetivo que nos faça
definir como inservível, aquilo que conquistamos. Obrigando-nos a adquirir uma
nova versão daquilo que já temos.
E você? Como lida com as quebraduras de seus pertences
e suas conquistas? Uma cola resolve ou prefere descarta-las? A final, você
lembra quantos chinelos comprou ano passado? Quantos copos descartáveis
utilizou essa semana ou mesmo quantos celulares já possuiu nos últimos cinco
anos? Quando um conhecido sociólogo polonês definiu nossa sociedade como
liquida, não se referia apenas à habilidade que as novas gerações têm de se
adaptarem ao novo, mas também, como somos facilmente conduzidos por entre os
becos desse novo mundo. Fluido e sem consistência; expansivo e sem solidez;
transparente, porém superficial; abrangente, porém raso. A cada dia que passa
nos tornamos mais consumistas e ansiosos pelas atualizações. Não damos sequer o
devido tempo para aquilo que temos e logo estamos querendo mais. Assim também
é, por tanto, a forma como tratamos nossas conquistas, não só materiais, mas
também, pessoais. Fazendo-nos uma incansável cobrança de que devemos ter sempre
mais, esquecendo-nos de sermos mais. E assim, podermos desfrutar melhor dos
momentos de felicidade, da beleza da natureza e da companhia de quem amamos.
Assim também, por tanto, somos com o outro. Quando uma fluida superficialidade
rege nossas relações e que de tão rasas, logo se evaporam. Não dando tempo de
nos conhecermos de verdade. Senão, há pouco tempo, lembremo-nos a quem
chamávamos de amigos ou até mesmo de meu amor e que hoje, passam-nos
despercebidos por entre os olhares que não mais nos enxergam. A balança dos
valores humanos e da dignidade não pesa quantos calçados nós temos, mas o
quanto caminhamos até chegar onde chegamos; não pesa quantos seguidores temos
em nossas redes sociais, mas quantas amizades verdadeiras fizemos durante a caminhada;
não pesa quantas curtidas ganhamos, mas o quanto curtimos aquilo que
conquistamos. E, se só hoje você se deu conta disso, não fique aflito, pois a
solução continua a mesma. Bote um prego no chinelo das amizades e vá adiante em
sua caminhada; costure o zíper da mochila do conhecimento e continue a guardar
sabedoria; recondicione o balaio das emoções e viva feliz; tampe o furo do pote
da crença e renove sua fé; remende a bola da vida e siga o jogo; cole os
pedaços do seu coração e continue a disseminar o amor.
Wyldevânio Vieira