Ela gosta de leite com aveia no café da manhã,
de ver novela e jogo de futebol na TV e, quando está com sede, estica a garrafa
de plástico no meio das grades para a mãe ir buscar água na cozinha. Quando
está brava, quebra o que vê pela frente e grita a ponto de a vizinhança
escutar.
Ana* tem 31 anos, mas se imagina no corpo de uma criança de
7, segundo familiares. Vítima de sequelas de uma meningite aos dois meses de
vida, a jovem cresceu, mas seu cérebro não se desenvolveu, assim como sua fala,
sua audição e seu poder de discernir a respeito de seu comportamento no
convívio social.
Seu jeito agressivo e a falta de uma internação permanente,
descartada pelos médicos, levaram seus pais a tomarem uma medida drástica e
errada aos olhos da lei. Há um ano e meio, a jovem viu seu quarto se
transformar em uma prisão, uma suíte com direito a cela e cadeado.
"A gente não quer isso pra
ela, a gente só quer o bem dela. Infelizmente foi a maneira que teve pra
segurar ela", afirma o pai, o autônomo Petrônio Gonçalves, de 63 anos.
A Polícia
Civil informou que vai instaurar um inquérito por cárcere privado, mas que, na
mesma investigação, vai apurar se houve omissão por parte do poder público em
relação à família da paciente. "Pelo que a gente está vendo, ele [o pai da
mulher] não está tendo muito apoio do município. Até hoje ela não foi
internada", diz o delegado José Augusto Franzini.
A
Prefeitura de Serrana informou que a mulher foi atendida pelo Ambulatório de
Saúde Mental do município, que avalia a possibilidade de tentar uma vaga na
rede estadual.
A
Secretaria de Estado da Saúde, por outro lado, informou que "somente casos
mais graves de saúde mental devem ser encaminhados para internação" e que
o acompanhamento deve ser feito pela rede municipal.
Da meningite à 'prisão'
As
limitações de Ana foram determinadas por causa de uma meningite aos dois meses
de vida que foi tratada, mas deixou marcas permanentes. Somente aos 2 anos, a
família percebeu as primeiras sequelas cerebrais, na dificuldade constante da criança
em ouvir.
"Eu
vi que ela estava demorando a falar, aí a gente foi descobrindo que ela não
escutava. Levei pra ver e confirmou. Ela virava de costas, a gente chamava, ela
nem olhava", conta a mãe, a doméstica Lázara Gonçalves, de 57 anos.
Os anos passaram
e a aparente calmaria dos primeiros anos da infância até a adolescência,
marcadas por idas a escolas especiais e ao contato com os outros, acabou com a
chegada da fase adulta, quando as vontades biológicas, como o de conhecer
alguém, se casar e ter filhos, confrontaram-se com sua condição.
"Após
os 20 anos, ela começou a ficar mais agressiva, mais revoltada até, não sei se
com ela mesmo, acho que ela percebe algo errado mas também não sabe. Ela quer
muito ter filho, muito essas coisas, tanto é que após os 20, que ela começou a
ficar mais revoltada, começou a dar muito trabalho em casa, querendo sair,
batia nas coisas, avançava na gente e no fim ela conseguia sair", afirma o
irmão, o porteiro Maicon Gonçalves.
Antes da
instalação da cela em seu quarto, a porta de madeira era suficiente, mas ficou
frágil para os ataques de histeria. "Foi chumbada na parede a grade. Ela
bate tanto que se fizer uma soldinha simples ela quebra", diz o irmão.
Do mesmo
modo, Ana quebrou a TV que tinha no quarto. "Ela gosta de pegar ferramenta
e jogar na gente. Se você colocar um objeto que ela pode quebrar em vários
pedaços ela vai jogar."
O muro da
casa era baixo demais. "A gente descuidou um pouquinho com a escada, pegou
pra usar e não guardou, subiu a escada e pulou pro lado de lá", afirma
Lázara.
Fora da
redoma, Ana pode ser perigosa e ao mesmo tempo frágil, de uma maneira
imprevisível. Dentro de casa, é capaz de arremessar um objeto qualquer em
direção aos que estão próximos. Na rua, é capaz de furtar algo, porque sabe que
dinheiro compra aquilo que lhe desperta desejo, dizem seus familiares.
Contam
seus pais que, quando conseguia escapar, tornava-se alvo fácil de estupradores,
mais de uma vez. Assim mostram os inúmeros boletins de ocorrência por abuso de
incapaz registrados até antes da alternativa ao cárcere. "Todo dia ela
chegava falando que homem abusou dela, chegava machucada", diz a mãe.
Quando
não estava em uma circunstância dessas, Ana pegava um ônibus em direção a
Ribeirão Preto (SP) ou outra cidade da região, sem pagar passagem, à revelia de
qualquer tentativa de impedimento. "Ela caía no chão pra chamar ambulância
pra ela, porque ela gosta de tomar injeção em hospital", explica o irmão.
Nos
melhores dias, os sumiços acabavam quando um policial a localizava e a
identificava, conta a família. Nos piores, ela dava um jeito de voltar,
geralmente com as roupas sujas por fezes e urina. "Do jeito que ela está
ali se eu abrir ela vai mesmo pra rua, não tem quem segure", afirma
Lázara.
Internação permanente
Após as recorrentes ocorrências envolvendo a filha, tudo o
que os pais conseguiram foi, há quatro anos, uma internação no Hospital Santa
Tereza, em Ribeirão Preto (SP), por pouco mais de um mês.
A filha recebeu alta e desde então permanece em casa com
tranquilizantes que, segundo a família, não ajudam. "Falaram que o que
tinha que fazer já tinham feito. Que era pra ela tomar o remédio em casa",
afirma a mãe.
Os pais de Ana afirmam não gostar em nada da vida que
proporcionam à filha. Sem esperanças de reabilitação, dizem ter consciência de
que é errado mantê-la presa em casa, mas alegam não saber o que fazer. “A gente
não se acostumou, é difícil, não tem o que fazer, é muito triste, é complicado,
ainda mais do jeito que ela está ali”, afirma a mãe.
Defendem que a única saída é uma internação permanente em
um hospital capacitado, mas não têm dinheiro para isso. Ao recorrerem ao poder
público, afirmam que conseguiram somente a prescrição de uma nova medicação
para Ana tomar antes de dormir.
"O melhor pra ela é uma internação num local em que
ela possa morar, ela precisa de acompanhamento constante, de vigília
constante", afirma Maicon.
Há seis meses titular da Polícia Civil de Serrana, o
delegado José Augusto Franzini confirmou ter ido à residência da família e, diante
da situação da jovem, vai instaurar um inquérito por cárcere privado.
Por outro lado, avaliou a princípio que a decisão foi
tomada "em desespero" pela família e vai apurar a responsabilidade
das autoridades municipais de saúde no caso. Ele disse que também vai levantar
o histórico de denúncias por estupro contra a mulher apresentadas pela família.
"O pai aparentemente está de boa fé. Ele está
desesperado", diz.
Prefeitura
A Prefeitura informou, em nota, que a paciente já tinha
sido acompanhada pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social
(CREAS) e encaminhada para o Ambulatório de Saúde Mental da cidade, onde foi
medicada antes de ser transferida para o HC de Ribeirão Preto, que a teria
liberado posteriormente.
Diferente do que a Prefeitura informa, a família, alega que Ana chegou a
permanecer apenas por uma semana no hospital antes de ser transferida para o
Santa Tereza.
A administração municipal comunicou que, no último dia 1º
de setembro, tomou conhecimento da atual situação da paciente por meio de uma
denúncia anônima e procedeu da mesma forma que a anterior. "Imediatamente
uma assistente social do CREAS esteve na residência da paciente para verificar
a veracidade dos fatos", informou.
O Ambulatório de Saúde Mental do município, segundo a
Prefeitura, aguarda a decisão do médico sobre a possibilidade de notificar o HC
da recaída da paciente. "Tudo o que é possível fazer, o município está se
desdobrando para auxiliar no tratamento", afirmou.
O Hospital das Clínicas, que não detalha o caso, informou
que a determinação de uma vaga para a paciente cabe ao Estado.
"Em relação a referida paciente informamos que sua
última passagem no HCRP foi há mais de 2 anos. Informações detalhadas sobre os
atendimentos são protegidas por sigilo médico. A responsável pelas vagas de
internação no HC é a Divisão Regional de Saúde (DRS)", comunicou.
Hospital Santa Tereza
A Secretaria Estadual da Saúde informou que a paciente foi
devidamente atendida pelo Hospital Santa Tereza até receber alta, em setembro
de 2013, com a indicação para o acompanhamento ambulatorial na rede municipal
de Serrana. "Depois disso, não houve nova solicitação de internação na
unidade estadual", comunicou.
De acordo com a pasta, a Política de Saúde Mental do SUS
estabelece que o atendimento psicossocial está ligado à rede municipal, por
meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
*O nome da mulher foi modificado para preservar a sua
identidade